Num primeiro momento, na fluidez etérea do facebook, confesso que
pensei: não é motivo para não andar de bicicleta. Obviamente sem
intenção de desprezar ou minimizar o trauma, mas porque não vi mesmo, de
imediato, uma relação causa-consequência.
Porém, sabia que um sentimento muito profundo foi colocado na
tirinha, pois a intenção foi um fazer artístico. E a arte nunca se
revela à primeira vista. Fiquei dias e dias com isto pensando e pesando
na minha cabeça.
A catarse é uma das funções da arte,
ao provocar uma descarga de emoções que limpa e purifica a pessoa, ao
reviver a realidade mimetizada (imitada, não-real). Esta foi minha
segunda leitura da tirinha: os quadrinhos narram o drama –
a tragédia - como forma de purgar a violência, o medo, o trauma.
Entretanto há muito mais, e muito mais denso e mais alto. Um símbolo
carrega várias camadas de significado. Uma palavra tem história e faz
história, e muitas vezes nós usamos palavras, ou símbolos, sem
explicitar
conscientemente toda sua bagagem de significado. Uma artista pode ir além e, sabendo ou
sentindo significados ocultos, lapidá-los ao produzir arte.
A bicicleta teve uma importância decisiva no movimento de liberação feminina.
Um (longo!)
artigo publicado pela revista Cranked Magazine mostra a importância da bicicleta na liberação feminina que começou no final da Era Vitoriana (década de 1890).
A revolução industrial trouxe uma série de mudanças sociais, entre as
quais uma elite que gastava seu tempo livre se divertindo com esportes.
A bicicleta, inventada em 1817, e suas evoluções posteriores, tinha um
design que impediu, por décadas, as mulheres andarem de bicicleta – elas
só podiam usar saia bufante e espartilho. Imagina fazer isto numa
penny-farthing…
Bicicleta extremamente instável e perigosa para os homens. E as mulheres ainda tinham que andar na bicicleta
sentadas de lado - como andavam nos cavalos (saiba o porquê deste “hábito” mais à frente). Imagina como deveria ser “fácil”!!
Muitos construtores, por razões do mercado crescente, tentaram
desenvolver modelos que fossem adequados às mulheres, mas sem grande
sucesso. No final da década de 1870, surgiu o modelo “safety bicycle”,
com praticamente o mesmo desenho que temos hoje.
Penny Farthing (esquerda) e Safety bicycle
A invenção dos pneus de borracha foi, na mesma época, outro avanço
significativo. Juntos, deram origem a uma bicicleta menor, mais segura,
mais fácil de dirigir e mais confortável. E a popularidade da bicicleta
como veículo explodiu por volta de 1890 (antes da invenção do automóvel,
é sempre bom lembrar).
Para as mulheres, a luta inicial foi pelo direito de simplesmente
andar de bicicleta. Naquela época, esporte e máquinas eram coisas
exclusivas de homens. Vários críticos diziam que andar de bicicleta
prejudicava a saúde física e mental da mulher. O “corpo frágil” da
mulher era uma justificativa sempre usada. Mas o maior argumento contra o
uso da bicicleta por mulheres era que isto seria “uma agressão ao
tecido moral da sociedade”. A suposição de que andar de bicicleta
poderia ser sexualmente estimulante para as mulheres foi uma preocupação
muito popular. Diversos selins “higiênicos” foram desenhados com a
intenção de prevenir, evitando que a genitália feminina entrasse em
contato com o banco da bicicleta. Como se vê, de fato não estavam
preocupados com o “corpo frágil” feminino, mas com sua moral.
Esta cena do filme
Mädchen, Mädchen toca no ponto:
Com o uso da bicicleta, as mulheres também puderam se livrar das
amarras de sua casa ou trabalho e passaram a experimentar um novo tipo
de liberdade. Porém, a simples
liberdade de mobilidade da mulher
foi considerada inaceitável, quase imoral. A mulher ciclista, podendo ir
e vir na cidade e arredores, sem depender dos maridos, e sem as
damas-de-companhia,
foi tratada como uma ameaça à sociedade e traria o colapso da moral e das boas maneiras!!
À medida que foi sendo aos poucos aceita, primeiramente em ginásios
fechados, depois em clubes, a mulher de bicicleta trouxe consigo uma
revolução gigantesca.
The bicycle…has been responsible for more movement in
manners and morals than anything since Charles the Second. Under its
influence, wholly or in part, have wilted chaperones, long and narrow
skirts, tight corsets, hair that would come down, black stockings, thick
ankles, large hats, prudery and fear of the dark; under its influence,
wholly or in part, have blossomed weekends, strong nerves, strong legs,
strong language, knickers, knowledge of make and shape, knowledge of
woods and pastures, equality of sex, good digestion and professional
occupation—in four words, the emancipation of women.
—John Gallsworthy (Debate, 6)
“A bicicleta … tem sido responsável por mais mudanças nos costumes e
na moral do que qualquer coisa, desde Carlos II. Sob sua influência, no
todo ou em parte, desapareceram as damas-de-honra, as saias longas e
estreitas, os espartilhos apertados, o cabelo comprido, as meias pretas,
os tornozelos grossos, os grandes chapéus, o pudor e o medo do escuro;
sob sua influência, no todo ou em parte, floresceram os fins de semana,
os nervos fortes, as pernas fortes, a linguagem forte, calcinhas, o
conhecimento do bem estar, o conhecimento da floresta e pastagens, a
igualdade entre os sexos, uma boa digestão e a ocupação profissional, em
quatro palavras, a emancipação das mulheres”. (John Gallsworthy)
Não são os homens que dizem! Elizabeth Cady Stanton, uma das principais líderes do
movimento sufragista,
anteviu o poder da bicicleta em transformar a vida das mulheres. Por
volta de 1895, embora tivesse 80 anos, ela disse para um artigo da
American Wheelman, “the bicycle will inspire women with more courage, self-respect, self-reliance…”
Uma amiga de Stanton, companheira das lutas sufragistas, também jovem de espírito aos 76 anos, disse:
Let me tell you what I think of bicycling. I think it
has done more to emancipate women than anything else in the world. It
gives women a feeling of freedom and self-reliance. I stand and rejoice
every time I see a woman ride by on a wheel…the picture of free,
untrammeled womanhood.
—Susan B Anthony.
“Deixe-me dizer o que eu penso de bicicleta. Eu acho que tem feito
mais para emancipar as mulheres do que qualquer outra coisa no mundo. Dá
à mulher uma sensação de liberdade e auto-suficiência. Eu paro e me
alegro toda vez que vejo uma mulher andando de bicicleta… o retrato da
liberdade de ser mulher livre de normas e controles” (Susan B. Anthony)
Tessie Reynolds, uma garota de 16 anos, que em 1893 pedalou de
Londres a Brighton, ida e volta, em 8 horas, está entre estas heroínas
do passado, que desconstroem a história fazendo coisas.
No Brasil,
Veridiana da Silva Prado,
aristocrata e intelectual, mandou construir um velódromo dentro de sua
Chácara Vila Maria, em São Paulo, onde patrocinava corridas de
bicicletas, importando a moda vigente na Europa, naquele final do século
XIX.
Época em que a bicicleta simbolizou a essência da “Nova Mulher”,
jovem, educada, praticante de esportes, interessada na carreira
profissional, independente.
Com elas, aprendemos que a solução não virá
para a mulher, mas somente
pelas
mulheres. Quando sua identidade não mais depender do homem: ser uma
esposa (por um contrato societário de divisão de bens) ou uma virgem (a
ser escolhida como esposa). Continua valendo até hoje.
Para saber mais, lê
Pedaling the Path to Freedom: American Women on Bicycles e
Wikipedia.
A Nova Mulher, em sua bicicleta, transformou-se num emblema de
emancipação tão grande que, em 1897, quando estudantes homens de
Cambridge
protestaram contra a admissão de mulheres,
enforcaram uma efígie de mulher pedalando uma bicicleta, evento que ficou registrado no tempo por esta foto:
Toda esta curva histórica faz voltar à tirinha:
A bicicleta como símbolo da liberdade feminina – ao mesmo tempo
metáfora e metonímia – e ferramenta para alcançá-la, liberação duramente
conseguida ao longo dos últimos 150 anos.
A bicicleta abandonada pela Thaïs é a liberdade feminina ultrajada, reprimida e violentada pelo machismo.
Mas… o que é o machismo?
É a crença que os homens são superiores às mulheres.
É a extrema valorização de características culturais vinculadas ao masculino e, ao mesmo tempo, um extremo
menosprezo das características vinculadas ao feminino.
Como toda crença ou fé, deriva de suposições mentais
autossugestionadas, que, por sua vez, são reforçadas socialmente. O
machismo e outros ismos alimentam-se de si mesmo, por isto são tão
fortes e agressivos e difíceis de combater.
Na América Latina o machismo tem sua contraparte no
marianismo,
uma visão religiosa dos gêneros, na qual a mulher é pura, dotada de uma
força moral superior, que lhe permite uma capacidade infinita de
humildade e sacrifício. Ou seja, grosso modo, a mulher “deve suportar tudo que vem dos homens”.
As três principais
religiões abraâmicas, além de
monoteístas, são patriarcais e machistas. Por outro lado, a maioria das religiões pagãs são matriarcais, as
deusas
são criadoras do Universo, geram a vida, a cultura – numa alusão óbvia à
gestação feminina – e simbolicamente eram muitas vezes representadas
por Árvores ou serpentes.
Lilith – pintura de John Collier (1850-1934)
Se você lembrou o Gênesis, acertou! A primeira narrativa bíblica é
uma alegoria de um fato histórico e descreve o processo pelo qual
sociedades matriarcais tradicionais foram substituídas por sociedades
patriarcais. Quando o deus-pai tomou o lugar da deusa-mãe (Árvore da
Vida / Serpente).
OK. Sabemos o que é o machismo e em que bases sociais ele se sustenta. Mas fica a pergunta:
por que o machismo? Por que o homem precisa
se sentir superior à mulher?
Dizer que a mulher dá a vida é uma figura de metonímia. Sem o homem,
ela não poderia dar a vida – a menos que fossem partenogênicas, como
salamandras, ou ginogênicas (o macho serve apenas para estimular a
produção de óvulos, mas o embrião se desenvolve só com os genes
maternos).
Mas, SIM,
apenas a mulher tem o poder natural da gestação, de receber e nutrir a vida, com útero e seios.
Pachamama, deusa andina
Um homem para ser pai precisa de uma mulher. Mas a mulher pode ser
mãe quando quiser. É ela quem faz a vida acontecer. Não por mero acaso
ou coincidência, a personificação da Morte
é também feminina em quase todas as culturas. Poder de vida e morte.
No processo de evolução é assim: na maioria das espécies, a fêmea escolhe o macho, processo conhecido como seleção sexual,
mate choice ou female choice. Biologicamente falando, homens, somos apenas um
reservatório de esperma.
Isto é muito para a mentalidade do macho humano. Para contrapor esta
servidão biológica, foi forjado um poder social, culturalmente
reforçado, que foi construído a partir da maior força muscular e
agressividade do homem.
Machismo é um misto de inveja do poder vital feminino e frustração dos homens por não serem desejados.
Então, ô tarado, da próxima vez que vir uma mulher andando de bicicleta, não importa como esteja vestida,
saiba que cantadas, buzinadinhas, assédios e outros gracejos indiscretos nada mais são do que manifestações da
inferioridade do macho. Exatamente o oposto da sedução e da conquista.
Em vez disso, seja homem. Pare. Peça inspiração para as deusas e
alegre-se: uma mulher de bicicleta é o retrato da liberdade feminina.
Nós só temos a ganhar com isto.